Interesse Público A participação de pequenas empresas em licitações
A Constituição da República destinou título específico à Ordem Econômica e Financeira (Título VII), estabelecendo princípios gerais da atividade econômica, entre os quais se insere o “tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte” (artigo 170, IX). No mesmo sentido, o artigo 179 prescreve que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei”.
O tratamento diferenciado concedido às ME e EPP visou incentivar o desenvolvimento econômico, com foco na geração de emprego, na distribuição de renda e na ampliação da arrecadação estatal: a norma jurídica é utilizada justamente com o intuito de fomentar a criação de empresas dessa natureza, como verdadeiro mecanismo de indução e de desenvolvimento desse importante extrato da economia nacional (função regulatória da licitação).
As disposições constitucionais próprias foram regulamentadas pela Lei Complementar 123/06 (que instituiu o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte), que, entre tantas medidas benfazejas, estabeleceu regras especiais para participação das ME e EPP nos processos licitatórios realizados pela União, estados, Distrito Federal e municípios, sob a rubrica “acesso aos mercados” (artigo 42 a 49 da LC 123/06). As primeiras experiências práticas na aplicação dos preceitos do estatuto das ME e das EPP levaram o legislador federal à edição da Lei Complementar 147/14, cujas disposições, no pertinente às licitações e contratos, dirigiram-se, em especial, aos artigos 47, 48 e 49 da LC 123/06. As alterações promovidas ampliaram o âmbito de aplicação da preferência para as ME e EPP, tornando obrigatória a previsão do benefício em detrimento da facultatividade das disposições primitivas do Estatuto (artigo 47). Vale conferir, nesse sentido, as novas previsões do artigo 48, I e III da LC 123/06, direcionados, respectivamente: (a) às licitações com valor de até R$ 80 mil e (b) à reserva de cota de até 25% nas licitações de bens de natureza divisível. Recentemente, sobre essas duas hipóteses de licitação privilegiada (“a” e “b” acima), o Tribunal de Contas da União e o Tribunal de Contas do Estado do Paraná emitiram duas importantes decisões, que merecem ser debatidas e trazidas à reflexão neste espaço. Tribunal de Contas do Estado do Paraná O TCE-PR, por meio do Acórdão 2.159/18 (Tribunal Pleno, relator conselheiro Ives Linhares), decidiu não se aplicar às licitações destinadas à alienação de bens a exclusividade de participação das ME e EPP, ainda que o valor correspondente ao bem seja inferior a R$ 80 mil (artigo 48, I da LC 123/06). Nos termos do voto do relator, a expressão “itens de contratação” da LC 123/06 não significa que este regime diferenciado estaria a autorizar ou a exigir a realização de licitações exclusivas para ME e EPP no caso de alienação de bens públicos até o valor R$ 80 mil. Destacou que os artigos 17, I, e 19, III, da Lei 8.666/93 dispõem que as alienações de bens imóveis devem ser realizadas por meio de concorrência ou leilão, o que as torna incompatíveis com a restrição de valor constante do artigo 48, I, da LC 123/06; que o artigo 1º do Decreto 8.538/15, que regulamentou em nível federal o tratamento favorecido, diferenciado e simplificado às ME e EPP, está limitado ao âmbito das contratações públicas de bens, serviços e obras; e que os artigos 15, V e parágrafo 1º, e 43, IV, da Lei 8.666/93 estabelecem a realização, na fase interna da licitação, de pesquisas de preços adequadas e suficientes que reflitam os valores de mercado, pelo que devem ser colhidos orçamentos de todo tipo de empresa e utilizados todos os meios legais para selecionar a proposta mais conveniente, com a diversificação de fontes de informação, especializadas ou não. A decisão do TCE-PR é, sob a perspectiva da legislação federal, correta. O Decreto Federal 8.538/15 efetivamente circunscreve a aplicação dos benefícios da LC 123/06 ao âmbito das contratações de obras, serviços e compras, não aludindo às alienações. Mas por conta desse argumento nada impediria que se pudesse estender o benefício também às alienações, desde que assim o dispusesse regulamentação estadual ou municipal[1]. O argumento mais significativo a justificar a ausência de limitação de sujeitos para as alienações de bens da administração pública reside, por assim dizer, no artigo 49, II da própria LC 123/06, que afasta a aplicação dos benefícios da lei quando o tratamento diferenciado e simplificado não se afigurar mais vantajoso para a administração pública. Na alienação de bens o que se pretende é arrecadar ao máximo para os cofres públicos, até porque essa alienação não prescinde de autorização legislativa (quando se tratar de bens imóveis) e de interesse público devidamente justificado, tudo nos termos do artigo 17 da Lei 8.666/93. A forma por excelência para compatibilizar os benefícios da lei para as ME e EPP com a exigência de “vantajosidade” no âmbito das alienações de bens seria a de garantir, a exemplo dos demais objetos, a prerrogativa de “empate ficto” no leilão ou concorrência respectivo, observando-se sempre o intervalo percentual de 10% entre as propostas (artigo 44 da LC 123/06). Tribunal de Contas da União O TCU, mediante o Acórdão 1.819/2018 (Plenário, relator ministro Walton Alencar Rodrigues), decidiu que “a aplicação da cota de 25% destinada à contratação de microempresas e empresas de pequeno porte em certames para aquisição de bens de natureza divisível (art. 48, inciso III, da LC 123/06) não está limitada à importância de oitenta mil reais, prevista no inciso I do mencionado artigo”. Nos termos do voto do relator, “não há na legislação que regulamenta a matéria determinação expressa no sentido de que a aplicação da cota de 25%, de que trata o inciso III do art. 48 da Lei Complementar 123/06, estaria limitada à importância de R$ 80.000,00, prevista no inciso I do referido dispositivo”, pelo que “não procede o entendimento de que esses incisos devem ser interpretados de forma cumulativa”. Além disso, “não se verifica na referida Lei a impossibilidade de que sejam distintos os preços praticados, para um mesmo produto, pelas ME e EPP e as empresas que concorrem às cotas destinadas à ampla concorrência, desde que não ultrapassem o valor de referência definido pela administração”. A decisão do TCU tem sido objeto de questionamentos. Sustentam alguns críticos que a hipótese de reserva de percentual de 25% somente seria aplicável aos casos em que o valor total da licitação se limitasse a R$ 80 mil, o que, na prática, abriria à administração a faculdade de chamar licitação reservada (artigo 48, I) ou reserva de percentual (artigo 48, III). Razão assiste ao TCU neste caso. A aplicação dos critérios é cumulativa e se distingue apenas pela natureza do objeto. A reserva de percentual é destinada às licitações, cujo objeto descreva a aquisição de bens de natureza divisível, valendo destacar que a regra do parágrafo 5º do artigo 8º do Decreto Federal 8.538/15 (segundo o qual o benefício não se aplica quando os itens ou os lotes de licitação possuírem valor estimado de até R$ 80 mil, tendo em vista a aplicação da licitação exclusiva prevista no artigo 6º) confirma a interpretação. Essa disposição, a contrario sensu, deixa ver que a reserva de percentual somente tem aplicação para lotes ou itens que superem R$ 80 mil, computando-se o percentual de reserva no somatório de todos os itens ou lotes em licitação. Não haveria sentido lógico em dizer que a reserva só se daria em licitações limitada a R$ 80 mil se a disposição do decreto impõe que se lhe aplique exatamente nos lotes — sempre de bens divisíveis e sem prejuízo do conjunto ou complexo — que venham a superar R$ 80 mil. Valorizar a participação das “pequenas empresas” nas licitações públicas é importante política de incentivos e indução; construir um cenário razoavelmente coerente de interpretação nas cortes de contas é exigência que a práxis administrativa tem recomendado.